(Mc. 3.1 a 6)
Na manhã de sábado o vento
soprava leve. Embora o vento fosse seco e quente era o único refrigério no
calor desértico daquela região. As pessoas andavam apressadas, longos
filactérios desfilavam pelas ruas. Em cada rosto a expressão taciturna dava
ares de seriedade, afinal a alegria e espontaneidade não são adequadas aos
sábados. Caminhavam na mesma direção, rumo à sinagoga. Todos os detalhes foram
providenciados, nenhum preceito havia sido esquecido. Roupas, lavagens
cerimoniais, jejuns e orações nos momentos certos, como se fossem administrados
por prescrição médica. E então a surpresa!
Ele estava lá. Não havia dúvidas,
ele era inconfundível. Além do mais, estava acompanhado daqueles que se
intitulavam seus discípulos. Sua postura era diferente, trazia uma humildade
sem esforço e a reverência alegre que contrastavam com a sobriedade ambígua do
lugar e consequentemente das pessoas que ali estavam. O que ele fora fazer ali?
Desafiá-los? Afrontá-los ou quem sabe seduzir os incautos para que o sigam? Não
Obstante todas as dúvidas, o fato é que ele estava ali, e aparentemente seu
único objetivo era orar. Uma oração simples, uma oração sua, mas que naquele
momento por mais privada que fosse se tornou uma oração pública.
Digo isso porque nós todos temos
a mania de observar, e foi assim que observei que todos o estavam observando.
As orações foram postas de lado, ou pior, foram usadas para encobrir a caçada
humana numa investigação velada. A pergunta que não foi feita audivelmente, mas
que dançava freneticamente no pensamento dos presentes era a mesma: Teria ele a
ousadia de profanar o sábado? Não, ele não profanou o sábado e nem menosprezou
a lei, também não descumpriu os mandamentos e muito menos zombou da religião do
seu povo. Ao invés disso, ele os cumpriu cabalmente e obedeceu.
Três fatos permanecem em
molduras, ainda hoje, nas paredes nuas da minha memória: uma pergunta, um
silêncio e um olhar. “é lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal?” sua voz
ecoou de maneira que a atenção de todos se voltou para ele. A mim ocorreu a
ideia de que nunca havia olhado para a lei sob aquela perspectiva. O que diz
minha lei? Para que ela serve, para fazer o bem ou o mal? Percebi quantos
sábados desperdiçados em cerimônias inócuas, esvaziadas de sentido pelo meu
egoísmo reticente. Mais do que aquelas mãos era meu coração que precisava de
cura.
À pergunta seguiu-se o silêncio.
Silêncio que fala, emudecimento que grita. Cada lábio que se cerrou e guardou
silêncio naquele sábado falou mais que os discursos litúrgicos e as longas
homilias. Permanecemos calados e fomos incapazes de responder à pergunta mais
óbvia que poderia nos ter sido feita, “é licito fazer o bem ou fazer o mal?”
Não porque não soubéssemos, mas porque não queríamos pensar no uso que fazíamos
da lei. A ignorância nos ajudava a justificar a profanação do bem e da lei.
Tirávamos a vida para salvar os nossos sábados. O silêncio disse tudo que a
boca calou e revelou o mais íntimo recanto de nosso coração. Depois daquele
silêncio mais nada precisava se dito.
Então veio o olhar. Um estranho
olhar, um diferente olhar. Um olhar perfeitamente humano e sobrenaturalmente
divino. Um olhar indignado e ao mesmo tempo entristecido. Ira e compaixão
plenas em um mesmo olhar. Como isso era possível não sei, só sei que aquele
olhar dissolveu minhas dúvidas e revelou-me a verdade sobre ele e sobre mim.
Pelo seu olhar eu enxerguei a dureza do meu coração e a coragem da sua bondade.
Embora todos o estivessem
observando, nem todos perceberam o que eu vi, e saíram para conspirar contra
ele, traindo a coerência e negociando seus princípios. Tramaram a sua morte que
era mais fácil do que admitir as suas limitações. Quanto a mim continuo me
enchendo de esperança todas as vezes que o vento sopra nas manhas de sábado.
Esperança de que eu aprenda com ele a usar minhas leis, minha religião e meus
sábados para fazer o bem.
1 comentários:
´´É mesmo uma grande ilusão o que pensamos de nós mesmo... e o quanto perdemos de aprender com Ele.
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