E quem era ela? Alguém com quase
nenhuma importância ou mesmo significado social. Sua presença não seria notada,
suas palavras não seriam ouvidas, suas expressões faciais não seriam
percebidas, seus sentimentos não mereciam atenção. Um objeto, uma propriedade,
ela era apenas uma possessão de alguém realmente mais importante, o que,
consequentemente, fazia dela mais insignificante ainda. Ela era uma pessoa, mas
isso era constantemente esquecido. Podemos até imaginá-la como um ser transparente,
invisível e imperceptível. Um ser sem história, sem passado relevante e com
futuro pré-determinado. Seu riso era guardado para agradar seus senhores, suas
lágrimas eram reservadas para os momentos de solidão. Ela era nada, um quase
ninguém, até que uma decisão errada a lança no palco da história humana, a
introduz na cena da vida e lhe concede nome e personalidade. Quem era Agar para
ser alvo daquele privilégio?
Esse, em minha opinião, é um
ponto muito importante da narrativa de sua primeira fuga em Gênesis 13. Não me
entendam mal, é claro que a relação de Deus com Abrão é mais importante, e que
a doutrina do pacto que substancia a narrativa mais ainda que o próprio Abrão.
Entretanto, nesta passagem é a Agar que Deus se revela. É a ela que O Anjo do
Senhor se manifesta. A doutrina da Aliança está exposta em seu diálogo com o
Senhor, e o pacto com Abrão é evidenciado por essa conversa à beira do poço no deserto.
Não é necessário repetir a história, todos a conhecemos bem. Sabemos que Abrão
foi chamado aos 75 anos com a promessa de que sua esposa conceberia dele, e lhe
daria uma descendência embora ela fosse estéril. Também sabemos que a promessa
só se cumpriu quando ele possuía 99 anos. Isso explica porque que entre 10 e 11
anos após seu chamado ele e sua esposa resolvem interferir no processo e
provocar uma gravidez através da escrava.
Como diz o texto de provérbio, “Sob três coisas estremece a terra,
sim, sob quatro não pode subsistir: sob o servo quando se torna rei; sob o
insensato quando anda farto de pão; sob a mulher desdenhada quando se casa; sob
a serva quando se torna herdeira da sua senhora.” (Provérbios 30:21-23). Ela
viveu uma overdose de importância. Embora
escrava, era ela quem trazia (pelo menos assim pensava) o cumprimento da
promessa de seu Senhor. Era seu ventre quem carregava o único herdeiro de
Abrão. Daí o desprezo pela senhora estéril, o que provocou tanto a ira de Sara,
que esta lhe trata com tamanha crueldade que ela resolve voltar para seu povo
egípcio. Grávida, solitária, magoada e ofendida, e igualmente irada. Lá vai
Agar pelo deserto levando apenas incertezas e rancores. Até que o Anjo do
Senhor, o Deus de seu senhor Abrão se revela de forma tão inesperada.
Dificilmente seremos capazes de avaliar a singularidade do momento, o
privilégio que ela recebeu, a graça que ela experimentou. Poucos são os que
receberam igual tratamento e raras vezes o Senhor se manifestou dessa forma.
Mas o como o Deus de Israel quis
ser conhecido pela escrava de Sara? O que teria ele a dizer a esta mulher em
meio à sua imensa aflição, e sob uma crise sem precedentes? Suas palavras
ressoam ao longo das inúmeras vezes que esta narrativa é lida ou contada. Ele é
o Deus que vê (Ismael), aquele que enxerga a mulher invisível, imperceptível,
desconsiderável. Aquele que dá atenção a quem todos julgam insignificante. Por
isso o nome de seu filho foi escolhido por Deus. Cada vez que ela o chamasse se
lembraria de que o Anjo do Senhor é o Deus que vê, o Deus que a viu, um
verdadeiro Ismael. Por isso, ela em meio à alegria e perplexidade, entre o medo
e a admiração o revela ainda mais ao afirmar que ele é o Deus que ouve. Que
ouviu as suas súplicas e respondeu à sua desesperança. Ele ainda ouvirá a voz
do menino anos mais tarde para que fique indelével a sua natureza tão poderosa
como graciosa (Gn 21.17). Ouvir significa que ele se importa, que está atento e
que visita a aflição da serva. Ele é o Deus que Vê e o Deus que ouve as
lágrimas de suas desesperanças.
É possível imaginar o efeito dessa
revelação. Seja para Agar que caminhava no abandono de suas esperanças, ou
seja, no cansaço do deserto dos ouvintes e leitores de Moisés. Pessoas que
caminhavam na agonia, peregrinavam pelo desânimo, e se viam indignos de
qualquer favor. Até que o Deus que vê e ouve se revela. Mesmo sendo uma escrava
egípcia, ele se revela. Mesmo não tendo importância aos olhos de seus senhores,
é a ela que ele se revela. Para que fique claro que mesmo na noite fria do
deserto solitário ele é o Deus que vê e ouve. Na crise, na angustia, na dor, na
falta de esperança, na fragilidade da fé, ele nos ouve e nos vê.
Mas, afinal, o que eu e ela temos
em comum?
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