Lucas 18 e 19
O que uma criança, um morador de rua e um funcionário público corrupto têm em comum?
Aparentemente nada, contudo é esta pergunta que tem me perseguido há algumas semanas. Trata-se de uma adaptação, uma tentativa débil de compreender o impacto que a pregação do evangelho deveria causar em nossas concepções estagnadas sobre a mensagem de Jesus. Deixe-me explicar melhor, imagine que um pastor anuncie do púlpito de sua alinhada igreja que a criança, o morador de rua e o funcionário público entrarão no Reino de Deus, mas o crente, membro daquela igreja, melhor exemplo de comportamento evangélico, não entrará. Pois é exatamente essa a mensagem que leio no Evangelho de Lucas, capítulos 18 e 19. E que espero demonstrar ainda que de maneira sucinta aqui.
Observações preliminares
A primeira observação necessária para se compreender os textos dos evangelhos é ignorar as suas divisões de capítulos e versículos. Embora úteis para a memorização e localização de passagens, elas, geralmente, roubam a nossa capacidade de compreender os limites das passagens. Em geral os subtítulos explicativos encapsulam as passagens e as pessoas perdem de vista o contexto, ou de maneira menos técnica, as relações que existem entre os acontecimentos e ensinos narrados pelo evangelho. Como consequência dessa observação, verifiquem no texto citado os seguintes links que demonstram o provável interesse do autor de que lêssemos ou compreendêssemos tais passagens em seu conjunto.
17.20 Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus...
18.17 ...quem não receber o reino de Deus como uma criança...
18.24 ...Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas.
18.29 ...que tenha deixado... por causa do reino de Deus...
18.39 ...Filho de Davi, tem misericórdia de mim.
19.9 ...Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abrão
19.11 ...Jesus propôs uma parábola...lhes parecer que o reino de Deus havia de manifestar
19.27 Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse...
Fica evidente que as passagens são costuradas pelo tema do reino de Deus. Desde a pergunta dos fariseus até a entrada triunfal de Jesus os acontecimentos selecionados e arranjados por Lucas subentendem três grupos distintos, os fariseus, os discípulos e obviamente aqueles que foram alcançados pela graça de Deus em Cristo, em geral os desprezados pelos fariseus e em muitas passagens pelos discípulos, também. Grupos focalizados por Lucas desde o início da viagem (9.51) agora sob a ótica da entrada no reino. Algumas dificuldades podem ser suscitadas, a saber: as parábolas sobre oração (18.1 a 14) e a narrativa de Zaqueu (19.1 a 10), que parecem não estar relacionada diretamente com o tema do reino de Deus. Quanto à narrativa de Zaqueu é simples responder, basta que o leitor observe o verso 11 do capítulo 19 e verá que Lucas faz questão de relacionar a Parábola das dez minas com a salvação de Zaqueu.
Já os ditos sobre oração exigem um pouco mais de exame. Primeiramente observe que a segunda parábola é dependente da primeira, ou seja, Jesus a propôs em decorrência da parábola do Juiz que não temia a Deus. Ora, como termina a parábola desse Juiz e da viúva pobre? “...Quando vier o filho do homem.”, lembre-se a discussão teve início exatamente com a vinda do reino (17.20). Além do que a parábola do fariseu e publicano é o cerne da comparação do capítulo 18, ou seja, O jovem fariseu rico e o publicano Zaqueu. Sendo assim, creio que podemos afirmar que o contexto da passagem poderia ser esboçado assim:
A vinda do Reino e discurso escatológico
Duas parábolas sobre a oração (entrada no reino)
Quatro eventos (as crianças, o jovem rico, um cego e Zaqueu)
Parábola das dez minas
A entrada triunfal do Rei
Concentrarei-me portanto nesses quatro eventos e particularmente em suas relações à luz do tema dos capítulos, ou seja,
Quem entrará no Reino de Deus?
Tente por alguns momentos fazer o exercício de se colocar no lugar da audiência de Jesus ou dos leitores de Lucas. Perceba que esses fatos abalam os firmes alicerces dos valores e conceitos daqueles ouvintes originais. O tempo e a repetição de uma mensagem moldada pela cristandade e por uma sociedade “evangélica” nos privam de perceber o impacto do que está escrito aqui, do escândalo provocado por Jesus com suas ações e ensinos. Note que ele coloca de um lado o exemplo crucial de um bom judeu, talvez um fariseu, e do outro uma criança, um cego e um publicano. De um lado aquele que sob todos os aspectos estava garantido no reino, e do outro daqueles cujas evidências os excluíam. De um lado o que nós introduzimos no reino e do outro aqueles que excluímos sob nossos critérios de valores e conceitos, para os quais constituímos nossas doutrinas.
Para os judeus as crianças não eram apenas socialmente menos importantes, eram incapazes de compreender os mistérios do reino. Mesmo que a situação da criança no judaísmo fosse melhor que na sociedade pagã, ainda assim prevalecia a ambigüidade com as crianças. Amadas por um lado, mas abandonadas para morrer de fome caso fosse necessário para alguma família. Descartáveis talvez fosse uma descrição mais natural para a as crianças filhas de pais pagãos. No judaísmo as crianças eram consideradas incapazes, especialmente no cumprimento da lei. Obviamente em um momento de entrevistas como aquele que o Evangelho de Lucas descreve os discípulos selecionavam os que seriam atendidos e obviamente por motivo de importância a criança era preterida em favor de um adulto com capacidade de compreender o reino. Portanto, elas não possuíam mérito suficiente para entrar no reino.
O cego Bartimeu (Mc 10.46) sofria provavelmente algum juízo de Deus. Ninguém é cego ou sofre tal maldição sem que ela seja causada por um pecado grave dele, ou talvez dos seus pais (doutrina da maldição hereditária da época). A cura do cego narrado por João é o que melhor ilustra esse conceito, “E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9.2). Os judeus sob os auspícios de que a vida se desenvolve à luz da causas e efeitos, entendiam que o que de bom ou ruim ocorria a alguém era fruto da justa retribuição pelas suas ações. Por isso havia um caráter meritório nas enfermidades. O cego não era cego por acaso, algo de grave ele ou seus pais (se fosse enfermo desde o nascimento) fizeram para merecer tal punição.
Tão absurdo quanto dizer que uma criança nasce com Síndrome de Down por culpa de seus pais ou que uma falência seja resultado de um juízo divino. Contudo, me pergunto se não é essa a explicação que damos às catástrofes sociais e individuais que testemunhamos. Quais foram as primeiras explicações sobre os portadores de AIDS ou para as vítimas de Tsunamis e deslizamentos. A mesma lógica, o mesmo raciocínio que tem amargurado corações dando explicações para os seus sofrimentos como punições por mau comportamento. A vida se transforma assim num ambiente escolar onde os bons alunos descem para o recreio e os maus ficam de castigo com o rosto voltado para a parede. Um cego, por ser amaldiçoado com a cegueira não entra no reino de Deus.
De igual forma o Publicano (em geral um judeu que cobrava impostos a favor do Império Romano), por ter se tornado um traidor de sua pátria não tem lugar no reino. Pode ser até bem sucedido, mas sua riqueza é escusa, e sua imagem de um corrupto. Não há indicativo de Zaqueu tenha sido desonesto, mas isso é indiferente, tal qual fazemos dos políticos por exemplo, generalizando todos como corruptos. A leitura de Mateus 11.19 e 21.31 evidencia que os publicanos estavam qualificados entre os piores tipos de pecadores, os seja, entre meretrizes e pecadores. O fundo do poço da moral judaica, e essa condição os colocava naturalmente fora do reino de Deus.
Para avaliar esse conceito, basta imaginar que um pregador dissesse do púlpito da igreja que prostitutas e funcionários públicos corruptos precederão os pastores e presbíteros no reino de Deus (Mt 21.31). Mas esse é o escândalo causado pela salvação de Zaqueu, o filho de Abraão. Uma vez que ao reconhecer Zaqueu como filho de Abraão Jesus afirma que ele não está fora do povo do pacto, mas ainda que tenha traído seu povo, ele entrará no reino de Deus.
Mas, quem entraria no reino de Deus segundo a concepção desses ouvintes ou leitores originais, no lugar de quem nos temos colocado? O jovem rico. É preciso antes lembrar que o fato de ser jovem é irrelevante para Lucas e de menor importância para Mateus que nos dá essa informação. O que é importante para ambos, é que se trata do exemplo de um homem abençoado. Ele traz as marcas ou credenciais que segundo a concepção da época (e da nossa também) o qualificava para pertencer ao reino. Era judeu, da linhagem de Abraão (isso explica o “também” do verso 19.9), cumpridor estrito da lei e abençoado, visto ser dono de grande riqueza. Ou seja, sob todos os aspectos esse homem entraria no reino de Deus na perspectiva dos judeus, inclusive dos discípulos.
Esse é um ponto importante da narrativa, os discípulos perplexos, confusos e escandalizados perguntam: “sendo assim quem pode ser salvo?” (18.26) Ou em outras palavras, se esse judeu abençoado e observador da lei desde a sua infância dificilmente entra no reino, qual de nós que não temos as suas qualificações poderemos entrar? É impossível (18.27)! Sim, é impossível para os homens. Observe que as palavras de Pedro ainda refletem a mesma lógica de causa e efeito ou de retribuição. “Eis que tudo deixamos” (18.28) significa que o nosso sacrifício deve receber a justa retribuição. Seja como for o que precisamos perceber é que se estivéssemos lá consideraríamos o jovem rico salvo e certamente merecedor do reino, e talvez os discípulos pelos sacrifícios que fizeram. Entretanto, Jesus diz que a criança, o cego e o corrupto é que entrarão no reino
Conclusão
Uma pergunta ficará para uma segunda etapa, ou seja, porque a criança, o cego e Zaqueu entrarão e o Jovem Rico não? Qual a diferença entre eles? Tentaremos responder essa questão numa ocasião que espero seja breve. O propósito era ter uma visão conjunta da passagem e creio que o exposto até aqui é suficiente. Mas não podemos fechar a Palavra sem fazer a aplicação do que lemos às nossas vidas. Por esse razão sugiro as seguintes conclusões:
1) A mais simples de todas, reveja seu método de leitura bíblica. Não leia o evangelho como uma espécie de coleções de histórias.Esforce-se para lê-lo como um conjunto de mensagens que apontam para um foco ou objetivo comum.
2) Reveja seus conceitos. Cuidado com o farisaísmo, a seita acabou, mas a prática não. A religião farisaica nunca saiu de moda. Essa é a nossa grande luta, nosso desafio. Perceba que o Evangelho confronta nossos conceitos, não um pastor, sim uma prostituta; não um presbítero, mas um desonesto; não uma senhora respeitável, mas um amaldiçoado mendigo. Perceba que nosso evangelicalismo estabeleceu conceitos tão rígidos como aqueles e somos co-autores e vitimas desses conceitos.
3) Portanto e finalmente, lembre-se: Não confie em sua descendência evangélica, o fato de estar na igreja desde a infância não é uma garantia. Não confie em seu comportamento ético e moral. Muito embora, ele deva ser consequência do evangelho ele não pode ser a causa da salvação. Ninguém é salvo porque cumpra a lei dos evangélicos. Não confie em suas bênçãos. Ninguém pode se sentir seguro simplesmente porque Deus lhe concedeu bênçãos temporais que passarão um dia. Nem confie em seus sacrifícios em favor do Evangelho, ninguém entra no reino por ter feito tais sacrifícios, a folha de serviço não conta para a salvação. “Que farei para herdar a vida eterna?” (18.18). Esse será o nosso próximo assunto
Que Deus os abençoe
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