Evangelho de João 9
O Começo.Chego atrasado. Passo às pressas pelas bilheterias e entro preocupado com o lugar onde vou conseguir me assentar. Entro no teatro ainda com as luzes acesas e o burburinho normal antes do início do espetáculo, esperando que este seja digno do substantivo que o descreve. Encontro um bom lugar, vejo a poltrona vazia. Dirijo-me para lá sem observar as pessoas que estão assentadas ao lado. Após me assentar é que percorro o ambiente com os olhos fazendo um reconhecimento rápido sem pensar em nada. Ao meu lado direito está assentado um casal apaixonado, mais interessado em sua paixão que na peça que foram assistir. Como são próprios de casais enamorados, todos à sua volta parecem figurantes para o seu romance e tudo é pretexto para que estejam juntos. Do lado esquerdo um senhor obeso, (faço aqui um esforço para não descrevê-lo como gordo, mais tarde abandonarei o esforço) tão constrangido com o incomodo que causava a mim naquela poltrona apertada, que eu realmente fiquei incomodado. As luzes diminuem, a peça irá começar, as cortinas se abrem...
1º Ato – Jesus, o cego e os discípulos
Um cego assentado à margem do caminho em que a vida passava, estendia suas mãos esperançosas para o vazio. As pessoas pareciam lhe conhecer, alguns lhe dirigiam algumas palavras antes de oferecer algumas moedas, quase sempre selecionando as de menor valor. Não era possível à distância perceber se davam por compaixão ou por impaciência, que às vezes são tão parecidas que é difícil distinguir um propósito do outro, mesmo para os autores da esmola. O cego trazia o rosto coberto, porque diferente de outros cegos não exibia sua enfermidade com o propósito de chantagear os transeuntes, mas porque a mendicância foi a única alternativa que lhe sobrara de sustento, uma vez que era cego de nascença. Jesus entra em cena, as luzes mudam de foco e intensidade dando-nos a clara noção de que ali estava a “luz que ilumina o mundo” (vs. 5). Os discípulos perceberam que Jesus observava o cego, o que o fez por algum tempo. Então inevitavelmente veio a pergunta, feita talvez para demonstrar conhecimento da doutrina, e assim impressionar o mestre ou talvez por dúvidas sinceras, não foi possível saber por que as intenções do coração são enigmas indecifráveis, exceto para Deus. Eles disseram: “Quem pecou? Foi ele ou seus pais?” (vs.2)
Ao final da peça foi que eu percebi que esta foi a única participação dos discípulos. Como eu, eles são expectadores dessa história. Mas com essa participação ficou claro que eles não compreendiam a obra de Deus (vs.3), e como o restante da humanidade passavam a vida à procura de causas para as catástrofes pessoais. Sempre deve haver um culpado, porque não concebiam a dor senão à luz de uma condenação. A resposta de Jesus corrige os seus conceitos, suas teologias e suas explicações lógicas. Então ao aproximar do cego, porque é sempre ele que se aproxima, mesmo quando o procuramos, Jesus faz barro com a saliva e unta-lhe os olhos. Cuspe e terra, lama, fico ainda hoje me perguntando por quê? Busco nas alegorias viciantes de minha hermenêutica, mas me ocorre apenas que o Salvador tem uma predileção por corrigir nossos preconceitos com ironias edificantes. O sujo cura, o imundo limpa, nesse paradoxo a que somos submetidos por causa de nossas regras soberbamente preestabelecidas. E lá foi o cego lavar-se no Enviado ou Siloé, talvez sem perceber que o Enviado já o havia lavado. Mas teve discernimento suficiente para perceber que quem o curara não havia sido nem a lama, nem as águas de Siloé, e nem mesmo sua fé, posto que de Jesus só conhecesse o nome (vs.11). Quem o curou foi Jesus, e isso ele sabia. As cortinas se fecham.
2º Ato - Os fariseus e o cego.
Quando as cortinas se abrem estamos diante de um tribunal ou qualquer coisa parecida. O ambiente era o de uma sinagoga, mas a reunião não tinha a intenção de estudar nenhum texto da Torah. Algumas pessoas trouxeram o ex-cego para que os fariseus pudessem explicar o inexplicável. Afinal nesta vida temos que entender tudo, até os milagres. E ninguém melhor para dar as razões da vida senão os teólogos das sinagogas. São eles os responsáveis por distinguir o certo do errado, o divino do humano. No decorrer do interrogatório e em meio aos depoimentos vai ficando claro, primeiro a incredulidade (vs. 18) desses juízes da consciência, depois o desacordo havido entre eles (vs.16). Mas, em uma única deliberação eles são concordes, Jesus precisa ser desmascarado e execrado publicamente. Mesmo que para isso fosse preciso o uso da força e do poder. Poder esse que por frágil que era precisava ser mantido por meio de desacreditar qualquer idéia com odor de ameaça.
Foi um longo julgamento, com certeza o ato mais longo da peça. É razoável que seja assim, pois enquanto nos debatemos em nossos ineficazes opiniões e conjecturas, Deus já estabeleceu o seu juízo. Primeiro o cego é submetido a um interrogatório detalhado dos fatos. Depois seus pais são convidados a depor sobre a cegueira do filho. O medo estava estampado no rosto deles (vs.22), e por medo nada quiseram revelar senão aquilo que não lhes comprometia. Pairava sobre eles a ameaça de excomunhão. Mal temido mais que a morte ou a enfermidade, visto que essas últimas ainda preservavam uma certa dignidade às suas vítimas (vs.22). Novamente o ex-cego é interrogado, agora sem paciência ele se atreve a questionar a lógica inquesionável dos fariseus. Por meio de argumento coerente ele expõe a incoerência e fragilidade do edifício teológico dos fariseus. O sábado foi o único argumento que puderam reunir contra Jesus. O artifício foi o de jogar a Lei contra a Graça, sem perceber que o único êxito que lograram foi o de reafirmar a sua própria “lei sem graça”. Por meio dela fizeram a Jesus pecador e a si mesmos justos (vs.24, 34). Assim termina o 2º ato, com a exclusão da sinagoga e do judaísmo do ex-cego pelos cegos que se auto-excluiram do Reino de Deus por amarem mais as suas regras que o absurdo do Evangelho. Fecham-se as cortinas.
3º Ato Jesus, O ex-cego e os fariseus.
Todos aproveitaram o intervalo antes do Gran Finale para ir ao banheiro, exceto eu, o meu vizinho gordo e o casal apaixonado. Estes porque quem ama não tem necessidades fisiológicas, aquele por estar muito constrangido para levantar seus três digítos da poltrona, e eu por estar preso entre eles. As cortinas se abrem, o ex-cego caminha agora confiante pelas ruas onde antes ele mendigava. Então Jesus volta à cena novamente, e novamente se aproxima dele. O diálogo é rapído, a conversa é curta, mas é o suficiente para que o fim seja verdadeiramente um começo. Os discípulos, testemunhas de toda a história, vêm aquele homem dizer “Creio” e depois se curvar em terra diante de Jesus (vs 38). Rendeu-se, porque rendido já estava, bem antes de o saber. Fica no ar uma sensação de indagação, de não saber, de perplexidade, como um perfume de uma flor que não conseguimos identificar. Ainda há tempo para uma última reprimenda aos fariseus e então, as cortinas se fecham.
O fim ou o recomeço.
Saio depressa, tão logo o meu companheiro gordo me permite. Resolvo caminhar até a minha casa. Primeiro, porque é perto do teatro, Segundo por ser uma mania da juventude, quando precisava caminhar para economizar dinheiro para o estudo na universidade. Tornou-se assim um hábito sempre que desejava meditar. E naquele momento eu precisava. Ao sair conclui que eu era um dos discípulos, acabara de assistir a um espetáculo, fora expectador privilegiado dessa história impressionante, que mudaria meus conceitos e teologia. Ao ganhar a rua vejo casais namorando e bêbados assentados em bares desengarrafando suas alegrias momentâneas. No caminho eu concluo que eu sou um dos fariseus, Vejo como minhas regras pessoais é que regem meu minúsculo mundo. Por meio delas eu julgo as pessoas e me lembro quantas vezes eu julguei o próprio Rendentor. Quantas vezes em minha insanidade razoável eu o considerei pecador e me cosiderei justo, e senhor do certo e do errado. Coloco a chave na fechadura e abro a porta, e juntamente com ela abre-se o meu entendimento. Eu sou o cego, cuja a graça de Deus na vida me faz ver tudo sob uma nova ótica, creio que é a isso que chamam conversão. Ao mesmo tempo percebo que passo agora a ser motivo de julgamento de outros. Eles querem saber o porque da graça, querem descobrir as causas do sofrimento, e eu simplesmente não sei. Naquela noite me deitei, certo de que sou os três, e adormeci com a frase final da peça latejando em minha mente:
“Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos.” (vs.39)
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