Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. (Salmo 23:4)
Nos últimos posts tenho usado o recurso literário de escrever na primeira pessoa. Tenho feito isso por duas razões. Em primeiro lugar, por que isso me aproxima do leitor. Assim, procuro não me apresentar como alguém à parte ou que não enfrente os dramas descritos nos textos. Ou seja, o pronome representa a idéia de que como qualquer ser humano decaído, travo as mesmas lutas que meus leitores te tido em nossa rápida existência, e é claro não me refiro à eternidade. Em segundo lugar, como bem argumenta F.F.Bruce ao referir-se à obra de Paulo, não é possível para o autor esconder sua assinatura, ou seja, me sinto bem acompanhado. Contudo, comentários tem demonstrado que alguns leitores tem associado o pronome pessoal na primeira pessoa como uma espécie de confissão velada ou referência à mim pessoalmente. Eles tem razão, o texto é sobre mim, mas é também sobre nós. Eles versam sobre todos, falam da condição humana e de uma reflexão importante sobre quem somos, no íntimo e sem maquiagens. Eles identificam uma reflexão sobre eu e você, portanto um bom leitor saberá que falo sobre nós. Mas, para tranquilizar alguns, volto ao uso de outros pronomes, apenas para não haja dúvida.
Sendo assim, penso que ele (o salmista), utilize aqui uma conjunção comum entre os demais salmos. Não me refiro apenas à figura do vale da sombra da morte, às vezes interpretada como a própria morte e luto, outras vezes como risco e ameaça de morte. Além dessa conhecida idéia a expressão “ainda que” (gam) tem o importante papel de intensificar a situação descrita. De maneira que os salmistas expressam por meio dessa intensificação situações limítrofes na vida humana, condições catastróficas que representam as fronteiras do sofrimento humano. Essa expressão se repete em muitos outros Salmos (pelo menos na versão ARA), tais como 27.3; 46.2,3; 92.7; entre outros. Indo direto ao ponto, eles estão enfatizando à sua disposição de perseverarem mesmo que as suas condições sejam precárias ou insuportáveis.
Em geral tais figuras apontam para calamidades, sejam pessoais ou naturais. É por isso que eles dizem “ainda que” a terra se transtornem ou os montes se abalem (Sl 46), ou “ainda que” um exército se acampe contra mim (Sl 27 - note a primeira pessoa). O salmista compara a situação vivida com as mais inimagináveis catástrofes humanas. Não significa que estivesse passando exatamente pela situação descrita, mas que seja morte ou vida, dor e aflição extremas, angústia e sofrimento indescritíveis “ainda assim...” dizem eles, e diz Davi nos Salmo 23, não temerei. É comum pensarmos que a atual situação que vivemos seja insuportável. Às vezes, eles (já que não posso dizer eu) gemem em meio a lágrimas e orações, sons impronunciáveis como o povo de Israel no Egito (Ex 6.5); como o povo de Israel nos tempos dos Juízes (Jz 2.18); como Jó amaldiçoando o dia de seu nascimento (Jó 3); como os salmistas nos salmos 31,32 e 34; como Jeremias (Lm 1.22) e finalmente como Paulo descreve em sua carta (Rm 8.26). Eles gemeram, nós gemeremos um dia, eu também posso gemer de dor e comparar a minha dor à maior catástrofe que meu frágil coração imagina.
Um outro ponto comum entre esses salmos é o contexto. Todos eles apontam para uma situação de temor. Medo, talvez um dos sentimentos mais democráticos que os humanos possam ter. Eles tiveram, nós temos, eu tenho. O medo, em geral, é fruto da incerteza, da insegurança, do desconhecido, do incerto. Temos medo porque desejamos saber tudo, controlar pessoas e seus sentimentos, e dominar as circunstâncias da vida. Temos medo porque apesar de nossos esforços não sabemos e não podemos garantir. A vida assim se constitui uma aventura no mundo do desconhecido, e arriscar é o melhor que podemos fazer.
Daí a importancia do que Davi escreveu, “ainda que... não temerei”. Sejam montes e mares, seja a morte (Sl 141.7) e sua ameaça, seja um exército inteiro contra mim, dizem eles, nem sempre nós, “não temeremos” por uma única razão, o Senhor. Portanto, a coragem desses homens frente as catástrofes não vem de seus espíritos destemidos, mas da confiança posta no Senhor. Não temerei, dizem eles, porque o Senhor está comigo (Sl 23), porque o Senhor é minha fortaleza (Sl 27); porque o Senhor é nosso refúgio presente na tribulação (Sl 46); porque os meus olhos estão fitos no Senhor (Sl 141) e especialmente porque ele(Deus) é (Sl 73 e 92). O que faremos, então, se a calamidade nos alcançar, diremos “ainda que”?
Artigos Relacionados
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários:
Postar um comentário