A última vez que morri, morri em silêncio. Não havia gritos e nem desespero, não havia lágrimas e nem lamentos. Foi um dia normal, tanto quanto um dia, nos dias de hoje, pode ser normal. Os sinos não dobraram, nenhum carro de som anunciou a minha morte e nem homenagens foram ouvidas. Não houve música, nem de alegria e nem de lamento, apenas silêncio. É como se eu não fizesse falta às pessoas que permanecem nessa vida, ou então a minha ausência não alterasse a rotina de um dia com suas exigências. Mas eu sei que morri. Posso ver pelos olhos sem brilho, pelo sorriso fabricado e pela aflição represada no coração, mas que se manifesta no rosto. Eles continuam agindo com se nada tivesse acontecido, evitam tocar no assunto, mas eles sabem que eu morri. Morri em silêncio, morri aos poucos e sem despedidas. Eu apenas morri.
A última vez que morri, morri sozinha, é bem verdade que outros morreram depois de mim. Mas no momento de minha morte eu estava só. Dizem de mim que sou a última a morrer, mas não é verdade. Eu sempre morro antes, e depois de mim, outros morrem também, a alegria, a espontaneidade, os sonhos, a empolgação, o entusiasmo, e muitos outros. Morri na solidão, não havia padre e nem pastor, não foram realizados nem missa de 7º dia e nem ofício fúnebre. Até porque há tempos não freqüento com assiduidade os templos religiosos. Contraditoriamente, as pessoas pregam sobre mim, cantam em meu nome, mas a mim mesma não conhecem. Por isso, a última vez que morri ninguém estava ao meu lado. Não seguraram em minhas mãos, não oraram comigo e nem entoaram hinos. Meus olhos se escureceram sem que ninguém olhasse para eles, minhas mãos esfriaram, minha respiração ficou ofegante e depois foi enfraquecendo até desaparecer. Morri solitária, porque solitária não sobreviveria.
A última vez que morri, não morri para todos. Alguns me preservam e comigo convivem, mas para outros, a grande maioria, eu morri. Eles já me sepultaram, já apagaram as minhas memórias de suas vidas. Neles não há marcas, nem sinais de que estive lá. Não sobrou nada de mim, nem um sonho esquecido num canto da sala, nem um plano caído debaixo da cama, nenhum projeto esquecido na gaveta, nem mesmo uma idéia formulada nas noites de conversas sem formalidades e sem propósitos, em meio a gargalhadas sem motivos. Eu sumi da vida deles, não porque eu quis, mas porque eles me mataram. Hoje sou em suas vidas como fantasma que amedronta seu frágil mundo alicerçado sobre o nada. Por isso, minha presença é tão pouco desejada, descobriram que é mais fácil viver sem mim. Suportam melhor o sofrimento que o desafio de viver comigo. No peito eles erqueram minha lápide, e na alma escreveram meu epitáfio. Quando você for às casas deles verá que eu já não estou sequer em seus porta-retratos. Onde antes se via meu sorriso eternamente estampado, agora estão espelhos refletindo as suas tristezas presentes. Eles não desistiram depois que eu morri, foi a sua desistência que me enfermou , até que eu entrassse em estado terminal e agonizasse em meu leito de morte, a saber, o seu coração.
última vez que morri, eu também ressuscitei. Não para todos, mas para uns poucos loucos e aventureiros, sábios suficientes para reinventar a vida e me convidar para dançar. O que seria da vida sem essas pessoas? O mundo seria em preto e branco, o futuro um cálculo matemático, e a existência uma lei inexorável. Como eu amo a surpresa da vida que nos espera nas esquinas das circustâncias, em curvas que não vemos o que vem, sabemos apenas é que nós é que vamos até ela. Se eles soubessem quanto eu amo a imprevisibilidade, o risco e a vulnerabilidade. Pois só os que se permitem ser vulneráveis é que correm o risco de me ver ressuscitar. E se você ainda não descobriu quem sou, leia Lamentações de Jeremias 3.18, e perceba que além da glória eu também pereci. Mas posso ressuscitar (Lam 3.21).
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2 comentários:
Olá, bom dia.
Obrigada por postar textos tão edificantes. Para mim, esse blog se tornou uma importante fonte de alimento espiritual. Não sei se o senhor se lembrará de mim, mas sou a Renata, irmã da Sandra e filha da Dona Irene. Gostaria de deixar meu contato: trabalhointerdisciplinaribes@gmail.com
resiste, dentro de mim, um morto, zumbi, fantasma. mesmo não acreditando que ele ressuscite mais uma vez, já o vi ressurreto, diante de mim, com meus próprios olhos.
ainda assim, temo, vacilo. não quero mais segurar esse fio, quase rompido, impróprio para me sustentar. esse mesmo que me sustentou várias vezes, revelando sua força vinda não sei de onde. como se eu não soubesse...
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