Imagino a cena, em lugar reservado, sem acesso ao público e mídia, se reúnem autoridades, alguns convidados e privilegiados do sistema. Abre-se a porta e os guardas conduzem uma mulher. Em seu traje apropriado ao decoro muçulmano ela é conduzida até o centro do pátio. A sua sentença é lida e então ela é colocada dentro de um buraco já preparado com antecedência para que ela fique enterrada do pescoço para baixo (se fosse um homem seria a partir da cintura). Sakineh Mohammadi Ashtiani, de 43 e três anos está sentenciada a sofrer morte por apedrejamento. Foi condenada em um processo por adultério. Viúva, foi acusada de manter relações extraconjugais com dois homens, cumpriu a pena para esse tipo de “crime”, foi submetida a 99 chibatadas. Posteriormente, em um novo julgamento, sob coação ela confessou ter mantido uma dessas relações quando o marido ainda era vivo. Resultado, foi condenada a pena de morte por adultério. Ali, perfilados estão os voluntários, civis que se apresentam para executar a pena. O tamanho das pedras é determinado na sentença. Não devem ser pedras muito grandes para que a condenada não morra muito depressa, e nem muito pequenas para que ela, porventura, sobreviva ao apedrejamento.
Imagino outra cena, ali mesmo no oriente, Jesus ensina seus discípulos assentado como era seu costume. Uma multidão chega de repente, traz consigo uma mulher apanhada em flagrante adultério. Ela já estaria sentenciada pela lei judaica, morte por apedrejamento. Não importa se a lei se referisse ao homem também, o que importa é que a “justiça” deveria ser exercida sobre ela. A multidão, ávida por espetáculos, mesmo que estes sejam peças de horror, aguarda a ordem de Jesus para iniciar o apedrejamento. As autoridades judaicas, ávidas de poder, esperam que Jesus descumpra a lei para poder resgatar sua posição ditatorial sobre a vida daquela gente ignorante que nada entendia da lei. E Jesus, como sempre, surpreende. Continua escrevendo na areia e diz: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra.”. Eu sei que teólogos e exegetas vão discutir a autenticidade dessa pericope. Questiona-se se estes fatos aconteceram mesmo ou se é fruto da imaginação de escritores posteriores a João, que acrescentaram essa estória ao evangelho. Mas a verdade é que o conteúdo da estória ou história faz eco ao evangelho pregado e vivido por Jesus. Naquele dia ninguém a condenou, nem mesmo aquele que tinha direito e autoridade para apedrejar, o único que não tinha pecados, Jesus. Ele a enviou de volta para a vida, para reconstruí-la.
Agora, não imagino mais, eu me lembro. Lembro-me das vezes em que eu participei de apedrejamentos. Hora recebendo pedradas, outras as atirando. A determinada e não realizada execução da sentença de Sakineh, e de mais 12 mulheres e 3 homens que aguardam o mesmo destino, pelo mesmo motivo, é a materialização de outras execuções que nós cristãos ocidentais também praticamos. Em nosso caso, realizamos repetidas vezes o apedrejamento emocional, a pena de morte social. Coincidência ou não, geralmente, pelos mesmos motivos. E por favor, não me entendam mal. Não advogo a inexistência de julgamentos e juízos, apenas desejo fazer pessoalmente a retirada da trave dos meus olhos antes de atirar a primeira pedra.
Há uma canção gospel, negro spiritual, que pergunta reiterada vezes em sua poesia: “were you there when they crucified my Lord?” (você estava lá quando crucificaram meu Senhor?). E a resposta é: Sim, eu estava lá. Como estava lá no meio da multidão, pronto para apedrejar a mulher apanhada em adultério. E com tristeza confesso, eu atirei a primeira pedra.
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2 comentários:
"é a materialização de outras execuções que nós cristãos ocidentais também praticamos"
Muito bom o texto.
É, meu querido e amado pastor, gostaria de dizer que também faço parte dessa multidão.Alessandro Porto
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